“Em breve, poderemos controlar o HIV sem precisar tomar drogas diariamente”
20 de agosto de 2015
Entre
os diversos subtipos de HIV, somente o grupo M se tornou pandêmico
porque aprendeu "desativar" todas as defesas naturais das células
humanas (foto: Leandro Negro/FAPESP)
Karina Toledo | Agência FAPESP – Diversos subtipos do vírus HIV podem causar a síndrome da imunodeficiência adquirida em humanos (Aids), mas evidências científicas indicam que a pandemia de Aids que hoje afeta cerca de 35 milhões de pessoas no mundo esteja relacionada a um grupo viral específico: o HIV-1 M.
Entender qual mecanismo evolutivo tornou essa linhagem tão mais bem-sucedida que as outras é o objetivo do cientista Frank Kirchhoff, diretor do Instituto de Virologia Molecular da Universidade de Ulm, na Alemanha. Para isso, há mais de duas décadas, ele vem comparando o HIV com vírus similares encontrados em macacos, a partir dos quais ele foi originado.
O trabalho rendeu, em 2009, a indicação de Kirchhoff para o Prêmio Gottfried Wilheim Leibniz, considerado o Nobel alemão. Os vencedores recebem até € 2,5 milhões da Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa (DFG) para serem investidos em novos estudos ao longo de sete anos.
Alguns dos principais resultados obtidos em suas investigações foram apresentados por Kirchhoff na palestra “Por que o HIV-1 foi capaz de causar a pandemia de Aids?”, ministrada na sede da FAPESP no dia 17 de agosto (veja os acordos que a FAPESP mantém com a DFG).
Segundo o pesquisador, o HIV-1 teria surgido em chimpanzés africanos ao sul de Camarões, há cerca de 10 mil anos, a partir de recombinações de vírus existentes em pequenos macacos, como os do gênero Cercopithecus.
Dos chimpanzés, ele teria saltado para os gorilas e para os humanos. O fato de os grupos virais M, N, O e P apresentarem diferente distribuição geográfica no continente africano seria resultado de processos distintos e independentes de adaptação ao hospedeiro humano. Existe ainda o HIV-2, pouco comum e raramente encontrado em regiões fora do leste da África.
Estima-se que o primeiro caso de transmissão de HIV-1 para humanos tenha ocorrido em 1920, na região do Congo, possivelmente para caçadores que tiveram contato com o sangue contaminado dos animais. O grupo M teria sido transmitido pela primeira vez por volta de 1940.
Enquanto o HIV-1 P foi detectado em apenas dois indivíduos, o HIV-1 N infectou cerca de uma dezena de pessoas e, o HIV-1 O, milhares – praticamente todas na África. A explicação para o grupo M ter sido o único capaz de se tornar pandêmico, segundo Kirchhoff, está no fato de que somente ele é capaz de desarmar todas as defesas antivirais naturalmente encontradas no organismo humano.
Em entrevista à Agência FAPESP, o pesquisador explicou quais são barreiras antivirais humanas e como o HIV-1 M conseguiu se tornar resistente a elas. Falou também sobre como aplicar o conhecimento dessas e de outras pesquisas que estão em andamento em novas estratégias de controle do vírus.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista à Agência FAPESP.
Agência FAPESP – Por que somente o HIV-1 M se tornou pandêmico?
Frank Kirchhoff – Ao longo de milhões de anos interagindo com retrovírus diversos, os humanos desenvolveram mecanismos de defesa antivirais. O problema é que o HIV-1 se tornou resistente a esses mecanismos, assim como a algumas drogas. Basicamente, o sucesso do HIV-1 do grupo M se deve ao fato de ser o único a ter desenvolvido fatores capazes de inativar todas as defesas humanas. Ele consegue se livrar de basicamente tudo o que lhe incomoda e que impede a infecção dentro da célula.
Agência FAPESP – Poderia citar exemplos?
Kirchhoff – Um dos fatores antivirais humanos é a proteína TRIM5α ( tripartite motif-containing protein 5), que normalmente se liga ao capsídeo viral e o degrada. Mas a TRIM5α já não consegue mais se ligar ao HIV-1. Ela ainda é eficaz contra o SIV (vírus causador da imunodeficiência símia), mas não mais contra o vírus humano. Outro importante fator de restrição viral é a proteína APOBEC3G, que ataca o genoma do vírus e introduz tantas mutações que ele deixa de ser infeccioso. Mas o HIV-1 produz uma proteína chamada VIF ( virion infectivity fator), que consegue degradar a APOBEC3G e, dessa forma, aumentar drasticamente a patogenicidade do vírus. O HIV-1 conta ainda com a proteína VPU (viral protein U), que se liga à proteína humana teterina e induz sua degradação pelo proteassoma (complexo responsável por limpar a célula de proteínas danificadas). A teterina impede que o vírus, após usar o maquinário celular para se replicar, saia para infectar novas células. Os vírus do grupo M são os únicos que conseguem inativar de forma eficiente a teterina.
Agência FAPESP – Os outros grupos de HIV-1 continuam evoluindo. O senhor acredita que um dia podem se tornar tão perigosos quanto os do grupo M?
Kirchhoff – Eles já são relativamente patogênicos. A grande diferença não é em relação à patogenicidade e sim quanto à sua capacidade de disseminação. As linhagens não pandêmicas já conseguem inativar a APOBEC3G e a TRIM5α, mas são menos eficazes contra a teterina. E nós pensamos que é justamente a teterina que impede a liberação do vírus nos fluidos corporais, como o sêmen ou o líquido vaginal. A teterina, no caso desses vírus não pandêmicos, talvez ainda consiga prevenir a transmissão de forma eficiente. No entanto, esta hipótese está baseada apenas em experimentos feitos in vitro, com culturas celulares. Ainda não foi provado em macacos ou humanos, mas penso que seja uma hipótese muito plausível.
Agência FAPESP – O conhecimento sobre o papel desses fatores virais e antivirais pode se traduzir em novas terapias ou estratégias de prevenção?
Kirchhoff – É difícil dizer. Na teoria, há muitas formas de usar esse conhecimento, mas por razões éticas é difícil de implementar essas estratégias em humanos. Por exemplo, poderíamos modificar geneticamente os fatores antivirais de forma a deixá-los novamente ativos contra o HIV-1, mas isso significa manipular as células imunológicas humanas. Poderíamos manipular a TRIM5α humana ou a APOBEC3G. É tecnicamente possível, mas difícil de avaliar os riscos. Pode não afetar somente o alvo específico, mas também alvos secundários. Precisa ser muito bem avaliado em modelos animais e outros sistemas antes de sabermos se é uma abordagem segura. Houve um experimento no qual colocamos a proteína TRIM5α de macacos em gatos e eles ficaram completamente resistentes ao FIV (Vírus da Imunodeficiência Felina). Mas é uma tecnologia muito nova e é difícil prever se seria possível usá-la em humanos.
Agência FAPESP – Mas as proteínas virais como a VIF ou a VPU poderiam ser alvos de novos medicamentos?
Kirchhoff – Elas são alvos, mas do ponto de vista farmacológico já existem outros alvos melhores. Penso que inibir o vírus, atualmente, não é o problema. Os inibidores da protease e da integrase fazem isso muito bem. Se você bloqueia a protease, mata completamente o vírus. Se você bloqueia a VPU, mata 90%. Então não é um alvo tão bom.
Agência FAPESP – Em um artigo publicado em 2010 na revista Science Translational Medicine o senhor descreveu um peptídeo encontrado no sangue humano que se mostrou promissor contra o HIV. Poderia contar como foi feita a pesquisa e como está o andamento?
Kirchhoff – Tínhamos a hipótese de que, no sangue humano, poderia haver agentes capazes de afetar o HIV, então fizemos um screening. Testamos todos os pequenos peptídeos ou pequenas proteínas sanguíneas. Encontramos um fragmento muito pequeno de uma proteína chamada Alfa 1-antitripsina, presente em grandes quantidades, e observamos que ele bloqueia a entrada do vírus na célula. Para ocorrer a invasão, uma proteína existente no envelope viral penetra a membrana celular e funciona como mecanismo de ancoragem. O peptídeo que identificamos consegue se ligar a essa proteína viral e evitar que ela penetre na membrana celular. O peptídeo original não era muito ativo, mas fizemos algumas modificações e produzimos derivados 400 vezes mais potentes. Em colaboração com outros grupos, fizemos ensaios clínicos de fase 1 e conseguimos reduzir a carga viral em mais de 90%. Mas o problema é que, como é um peptídeo, a administração precisa ser intravenosa e são necessárias quantidades relativamente altas para o tratamento. Foi bem tolerado, não houve resistência cruzada com outros compostos, mas é um tratamento muito caro. É uma grande desvantagem não poder administrar por via oral.
Agência FAPESP – Ainda estão trabalhando para aperfeiçoar o composto?
Kirchhoff – Sim. Agora estamos tentando gerar formas modificadas com maior estabilidade. Em colaboração com outros grupos, tentamos colocar o fármaco em nanopartículas. Na forma atual, não é um bom medicamento, mas penso que apresenta algumas vantagens que justificam o investimento. Primeiro porque tem um mecanismo diferente de todas as outras drogas hoje usadas contra o HIV e dificilmente haverá problema de resistência. Além disso, embora existam bons medicamentos contra o HIV, ainda há muitos outros vírus patogênicos para humanos que usam mecanismos similares de ancoragem e, se encontrarmos peptídeos com ação parecida com a da Alfa 1-antitripsina, poderia ser interessante para outras doenças.
Agência FAPESP – Caso consigam aperfeiçoar a droga para o combate ao HIV, a ideia seria usá-la junto com o coquetel atualmente prescrito?
Kirchhoff – Sim, penso que a melhor estratégia é usar sempre de forma combinada e não a monoterapia. A resistência do vírus às drogas é ainda um grande problema. Não há muitas classes diferentes e as vezes o paciente é infectado com vírus multirresistentes. Nesses casos, esta seria uma arma ainda eficaz.
Agência FAPESP – O seu grupo também descreveu na revista Cell um fator existente no sêmen humano que favorece a infecção. Poderia contar como ele atua?
Kirchhoff – A transmissão sexual do HIV nem sempre é eficiente e, por esse motivo, imaginamos que poderia haver no sêmen fatores inibitórios. O que fizemos foi separar todas as pequenas proteínas existentes no sêmen e olhar como cada uma delas afetava a capacidade infecciosa do HIV. Para nossa surpresa, não encontramos nenhum inibidor e sim um peptídeo que aumenta a capacidade de infecção. É um fragmento da proteína fosfatase ácida prostática (PAP, na sigla em inglês), que é secretada a partir da glândula da próstata. Esses fragmentos formam pequenas fibras amiloides com carga positiva. Normalmente, o vírus tem uma carga negativa. Como a superfície da célula também tem carga negativa, ela, geralmente, repele o vírus. Portanto, os vírus realmente têm dificuldade para se ligar às células. Essas fibras facilitam o processo. Podem aumentar em 100 mil vezes a capacidade de infecção.
Agência FAPESP – E essa descoberta pode abrir caminho para algum método de prevenir a transmissão?
Kirchhoff – Sim. Algo inesperado é que atualmente usamos moléculas similares em terapias gênicas, pois nesses casos desejamos facilitar a infecção da célula por retrovírus. Nós também desenvolvemos agentes capazes de bloquear essa interação das fibras amiloides do sêmen com o HIV. Imaginamos que talvez essa inibição possa aumentar a eficácia de abordagens microbicidas [uso de compostos que, se ministrados no interior da vagina ou do reto, conseguem proteger o indivíduo contra diversas DSTs, inclusive o HIV], pois até agora elas não se mostraram bem-sucedidas. Uma das razões pelas quais não funcionam bem, possivelmente, é a presença dessas fibras. Por enquanto todos os testes com esses inibidores foram feitos in vitro, em modelos celulares. Os estudos com animais são muito caros e é difícil conseguir financiamento na Alemanha.
Agência FAPESP – O senhor acredita que algum dia os humanos conseguirão vencer a batalha contra o HIV?
Kirchhoff – Já foi feito muito progresso. O número de casos novos de Aids e de infecções pelo HIV está caindo porque cada vez mais pessoas são tratadas. Mesmo na África. E penso que isso retarda o avanço do vírus. Não tenho certeza de que conseguiremos algum dia curar a infecção, mas penso que, no futuro, seremos capazes de controlar o vírus sem ter que tomar drogas diariamente. Estão surgindo drogas de longa duração, que só precisam ser tomadas com intervalos de meses. Isso será muito importante na África, onde muitos não têm condições de ir com frequência às clínicas.
Agência FAPESP – O senhor afirmou durante a palestra na FAPESP que considera a ampliação do tratamento mais importante para o controle do vírus do que uma vacina. Por quê?
Kirchhoff – Com o tratamento adequado, a carga viral fica muito baixa e essa pessoa dificilmente vai transmitir o vírus para alguém. Penso que, atualmente, essa é a forma mais eficiente – além da camisinha – de evitar a transmissão do HIV. Se todos os portadores forem tratados, não transmitirão o vírus e isso será mais eficaz do que qualquer vacina que temos em vista até o momento.
Extraído de: http://agencia.fapesp.br/em_breve_poderemos_controlar_o_hiv_sem_precisar_tomar_drogas_diariamente/21732/
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